Em certos momentos da vida parece que os eventos são todos marcantes e dignos de serem recordados após anos, em outros há uma espécie de automatismo existencial que suga nossos dias e nem percebemos o tempo passar. O primeiro exemplo costuma se dar na juventude onde tudo é fascinante, o segundo se dá na fase mais adulta ou próxima disso em que a rotina passa a ser inevitável. As explicações para isso são simples e qualquer pessoa pode perceber o fenômeno de forma clara e incontestável, basta seguir o raciocínio que proponho aqui. Mas qual a utilidade dessa reflexão para a vida prática? Na verdade, esse tipo de consciência não é útil para 99,99% da população mundial, pois este percentual costuma encarar a vida como sendo uma tarefa árdua e desgastante pela qual são obrigados a passar, afinal, ter que trabalhar a semana toda para pagar as despesas básicas e eventualmente ousar comprar algo mais valioso de forma parcelada ou utilizando o que foi poupado para ter uma simples fuga da rotina. A mente interpreta estes movimentos como de sofrimento contínuo com exceções servindo como válvulas de escape.
Agora vamos dissecar este assunto para estabelecer as bases sobre as quais trabalharemos. Assim, tomamos o tal automatismo existencial como ponto de partida para depois retrocedermos ao período anterior, que para nós, será o objetivo dessa conversa. Já que o tempo cronológico é percebido racionalmente apenas pelos seres humanos, pois os animais se atêm apenas ao tempo biológico, a percepção que a partir de certas épocas o tempo “voa” é uma escolha consciente que age sobre o inconsciente das pessoas. Se ao começar a trabalhar ou estudar, talvez ambos, o indivíduo passa a considerar essa rotina desgastante e começa a comentar isso com as pessoas, sua mente entende que se trata de um sofrimento ter que acordar as 6:00 da manhã para trabalhar e voltar da escola ou universidade depois das 23:00 horas de segunda à sexta-feira, muitas vezes até os sábados. Como a função de sobrevivência está sempre ativada, logo após a conclusão de cada ciclo diário, durante o sono, a memória é apagada para preservar o organismo daquele “sofrimento” jogando fora todos os registros dos eventos vividos naquele dia.
Agora vem a pergunta: “Por que aceitar essa rotina tão desgastante?”. As repostas variam entre expressões de conivência e submissão até negações justificando o estado como momentâneo com projeções de recompensas futuras. É fácil se acomodar em um ininterrupto ciclo de sofrimento tendo como feedback às lamentações as palavras de conforto ressaltando o valor do esforço, a realidade imutável do inevitável “sofrer para ter”, as escrituras bíblicas ressaltando a necessidade do trabalho árduo para obtenção do necessário para a subsistência, entre tantos outros mantras populares. Nada disso faz com que a sensação de que o tempo passa rápido demais seja consoladora ou benéfica, o que fica geralmente é o sentimento de desperdício, de ter passado pela vida sem extrair dela tudo aquilo que é potencialmente possível viver. Então, tal consciência se torna insuportável para um grande percentual de pessoas que se sentem vivendo aquém de suas possibilidades. Porém, outra grande parte apenas aceita tais condições e aprende a viver com a rotina que conquistaram e mesmo não havendo fartura se sentem gratas.
Para muitos, tudo aquilo que foi falado sobre o automatismo existencial é a realidade sem filtros ou fantasias. Mesmo quem é visto como bem-sucedido financeiramente, em seus relacionamentos, em suas carreiras ou outros aspectos da vida, acaba recebendo adjetivos atenuantes que remetem a determinados problemas ou dificuldades que costumam ter. Entretanto, a ideia não é viver uma vida sem problemas e eventuais dificuldades, e sim acumular experiências mais ou menos com a frequência em que são vividas. E isso remete à infância, fase da vida em que até pessoas com problemas cognitivos agravados pela idade costumam recordar. Afinal, quando gozavam da condição em que a pouca idade instigava a curiosidade e, por consequência, tornava especial cada nova situação de vida, onde o foco estava no presente e não em um futuro em que se poderia obter alívio do sofrimento da rotina, as pessoas estavam alheias às amarras impostas pela “maturidade responsável”. A principal delas é ter que encarar o cotidiano como sendo uma mesmice desgastante que se repete até a próxima pausa, que quando ocorre, não é tão gratificante quanto se esperava.
Por fim, para que se amenize os efeitos de um automatismo existencial, é preciso analisar realmente a rotina em que se vive, buscar momentos de descontração e pequenas vitórias sutis do cotidiano, pois elas existem. E se mesmo assim não encontrar fatores que possam ser vistos como positivos, só resta sair desta situação o mais rápido possível. O grande balizador deve ser algum indicativo de crescimento, pois a constante melhora, o aperfeiçoamento contínuo pode e deve servir como estimulante para a mente se manter ativa e registrar eventos do dia a dia que precisam ser recordados. É um esforço consciente de reinterpretação dos fatos da vida, mas que é muito importante para se retomar parte de fascínio e da magia que era vivida na infância e que garantiu lembranças quase eternas. Assim, armado com o que existe de mais poderoso mental e emocionalmente é que se deve encarar as tarefas diárias, extraindo delas a motivação e o encantamento, que se vividas por uma criança, seriam lembradas por anos a fio.
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Sobre o autor
Kako Ramos é músico, compositor, produtor musical e professor. Tocou nas bandas Dog is Dead, Striknina, Desaster, Desecrate, Evocation, Dallas, Spellbound, In Pace, Shekinnah, Waiftown, Xaparraw, Khramus e Heavinna. Escreveu para heavinna.blogspot.com, TopBuzz, e Canal Seratonina. Ministra aulas particulares de teoria musical, guitarra, contrabaixo elétrico e produção musical.
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